O DESIGREJADO


Igreja é mais uma ambiência social. É um lugar onde pessoas se encontram com uma finalidade transcendental, que se sustenta na experiência humana afetiva correlacionada e compartilhada. Não é casa de Deus, de fato, uma minoria afirma que o é, mas a maioria dos igrejeiros sabe que o Deus da fé dela, não habita em templos. Por outro lado, muita gente diz que tem fé em Deus, mas nunca pisou numa igreja e nunca se inclinou aos dogmas e ao labor teológico. São pessoas que dizem que têm fé, mas vivem conforme sua consciência (ainda que influenciada pela cultura sócio-religiosa), quando na melhor da perspectiva, “não fazendo a ninguém aquilo que ela não gostaria que alguém fizesse a ela”.

Durante muito tempo existia o crente e o desviado. Quem estava dentro da igreja era crente, quem caia fora era desviado. Mas não bastava apenas estar dentro da igreja para ser crente, teria que seguir a risca os mandamentos locais, já, quem estivesse fora do aprisco, não tinha meias palavras, era do mundo. Não ser membro de uma igreja, era sinal de deficiência espiritual, que convertia a pessoa numa leprosa moral. O melhor dos antídotos da manutenção da boa fé da cristandade era o de se afastar dos infectados pelo mundo. Ainda é assim, mas esta visão vai mudando aos poucos.

Começa-se então a mudar a visão reducionista dos chamados “filhos”. Filhos de Deus eram apenas os crentes que se ensamblassem nos padrões da igreja institucional. Uma minoria, com grande medo de estar pecando, já encara a ideia de que ser “filho”, não é ser dogmatizado pelo Cristianismo: “um índio não-cristianizado pode ser seu ‘irmão’”. Já aceitam que “não precisa ser cristão para ser cristão”, o que equivale dizer: “não precisa ser cristão-catequizado para ser um filho de Deus”. Desta forma, a mesma lógica predomina-se na ideia de “comunidade da fé”, onde o próprio seio familiar ou grupo de amigos pode ser esta comunidade (igreja). Em hipótese alguma, esta compreensão e realidade podem comprometer a igreja convencional, pois como disse no início, a igreja é uma ambiência social poderosa, com capacidade de influência, para o bem e para o mal. É ótima contra o tédio, solidão e tudo mais com o que o ser humano se aflige, mesmo a despeito de ser, também, uma grande fábrica de alienados, infelizes, desesperados e bitolados.

Desigrejado é o termo usado para quem decide seguir “carreira solo” em detrimento da membresia e convivência institucional, mas isso perde o seu significado, etimologicamente, quando o mesmo se considera igreja como um estilo de vida, ideia subvencionada pelas próprias Escrituras. Um “igrejado” no seu meio social, onde ele delimita seus vínculos (família, escola, trabalho e etc) ou vai se deparando com eles na jornada de sua vida, tendo como dogma, o afeto vital para a boa convivência e préstimos. Desigrejado virou uma designação para quem se afasta da igreja convencional, sendo que, na real, desigrejado é o indivíduo que se afasta do espírito afável e doce que lhe é proposto todos os dias, em função de uma mente corrompida e um coração abjeto. Por conseguinte, na igreja convencional, está cheio de desigrejados, assim como em qualquer perímetro social deste mundo.

Vale dizer que muitos já não engolem os esforços intelectuais para convencer de que a igreja convencional cristã é o único ambiente que comporta os “trigos”, com seus joios indissociáveis, o que equivale a dizer que o tal celeiro não é patrimônio da religião abraâmica. A igreja institucional, já que existe, deveria ser apenas um megafone de amor, não para angariar seres humanos, mas para prezar pela vida e pelo seu bem-estar e aqui me faço valer dos princípios da revolução francesa, princípios que dariam nobres matizes a ela: Liberté, Egalité, Fraternité. A igreja convencional poderia e pode ser salva quando ela deixa de ser meretriz para acolher meretrizes, deixa de ser doentia quando consola os doentes, deixa de ser um cárcere quando visita os encarcerados, deixa de ser miserável quando abraça os miseráveis. Ela seria uma ambiência social incrível, mas nunca exclusiva, pois nada se torna exclusivo por ser bom e caridoso. Nada ganha concessão divina para representar Deus na Terra ou ainda, poder de falar em nome de Deus, por ser humana e misericordiosa. Não acredite nisso, não acredite que só na igreja convencional o bem é encarnando e compartilhado, pois isso é apenas mais uma falácia dos santos do pau oco. Um cardume abissal pode ser mais interessante.

Estou fora da igreja convencional há alguns anos. Longe. Pretendo nunca mais voltar. Tenho asco de sua perversão e tenho a plena consciência de que ela é uma construção hegemônica do ser humano por entender que o reino de Jesus poderia ser pavimentado, sistematizado e ilhado. Contudo, defendo o direito dela existir, mesmo que ela não seja um projeto, especificamente, engendrado por Cristo, mesmo que ela não tenha sido o XBox esperado pelo menino Jesus. Até a recomendo para algumas pessoas. Acredito que ela pode servir a Cristo e ser luz no mundo, praticando a justiça do bem. Minha igreja é minha família e meus amigos. Isso se estende no projeto que desenvolvo, onde sigo meu caminho me deparando com o assombro da presença Dele nas curvas e nos soslaios da cotidianidade. Uma chuva pode ser o ministério do louvor, um sorriso de esperança de uma criança abusada pode ser a melhor pregação. Minhas frustrações já não são demônios a serem escalpelados pelo suor pentecostal e minhas alegrias já não são testemunhos para angariar fiéis.

O corpo de Cristo é formado por gente e todo formato que surge como consequência de desdobramentos históricos e que ergue corpo, forma, sistema, controle, tradição e política, deve subsistir sob o pacto de valer a pena em favor do bem. É fazer valer para o bem, o monstro de laboratório. O que está em expansão não é a classe desigrejada, e sim a autonomia da igreja; do templo feito de carne. Autonomia esta, não em relação ao espírito do evangelho, mas em relacão a um tipo de ambiência. É a era do desvínculo daqueles que seguem a Cristo longe da igreja convencional sem se deixar de ser igreja. Esses seguem no seu caminho, flertando com tudo que faz o bem no seu percurso de vida. Religião é inerente ao Homem, pois religião, segundo São Tiago, é a compaixão na práxis; um estado de espírito que gera atos ínfimos quando ao mesmo tempo, gigantes. Agora pertencer a instituição que se apropria da fé, não é inerência, é sedução em grande escala e na melhor das hipóteses, é uma escolha para participar de uma ambiência social conveniente.  

Tudo bem, podem me chamar de desigrejado, mas "há controvérsia" e que também não tirará o meu sono do meu berço nômade, nas trincheiras donde a vida acontece, em sua crueza, nueza, e beleza.

Um comentário:

Anônimo disse...

Concordo com tudo que você escreveu. Mas uma coisa que você nunca deixou e deixará, é de ser um eterno religioso, seja com sua família ou com seus amigos. A religião é intrinsecamente humana e mesmo que você não a pratique nos templos (se é que lá pode se praticar alguma coisa) você nunca deixará a religião se afastar de você. Para aqueles que adotaram uma postura dos sem igreja (e hoje é modinha), uma coisa que não devem se esquecer é que mesmo nos bares, shoppings e qualquer lugar que venham a se reunir, nunca e nunca mesmo deixaram de ser religiosos.

Abraços

Umberto.
Osasco – São Paulo