500 anos de Calvino

A eleição incondicional
O que seria uma eleição por parte de Deus sem Jesus? Você consegue imaginar?



A graça irresistível é o amor irresistível!

Comemora-se neste ano, 500 anos de Calvino, o teólogo francês iconizado como o ‘sr. Predestinação’ e que é um dos pilares dos reformadores. ‘De lá pra cá’, Calvino, com sua vasta obra literária, foi difundido teologicamente por vários teólogos preponentes que se enraizou por toda Europa e por fim, em todo mundo há séculos. Ricardo Gouvêa, diz que ‘não existe eleição se não for uma eleição em Cristo’ e eu concordo, pois isso reverbera com o que Paulo disse a cerca de Jesus e sua reconciliação com toda a criação. O discurso de Paulo é de que toda a trama de eleição aos que herdariam o reino do Pai aconteceu antes da criação do mundo, redimindo tudo que haveria de ser eternizado antes mesmo de existirmos. 


Essa eleição em Jesus, antes da fundação do mundo, conforme diz Paulo, santificou desde sempre, todo aquele que nele passaria a crer após a sua própria existência. Já nascemos santificados por crermos nele antes mesmo de deixar o nosso útero materno, pois ainda que a nossa conversão se dê no processo existencial, Deus não ‘precisa esperar’ para ter-nos como filhos agraciados e isso não é presciência, isso é uma ação do Deus soberano que faz todas as coisas acontecer antes mesmo delas acontecerem, pois o que acontece em Deus e acontece através de mim, sofre uma eqüidistância entre a vida e a existência, totalmente congruente entre si.

“...fomos santificados por meio da oferta do corpo de
Jesus Cristo, feita de uma vez por todas...”
“...Porquanto, com uma única oferta,
aperfeiçoou por toda a eternidade todos
quantos estão sendo santificados...”

Paulo diz que ‘fomos escolhidos desde a eternidade, para sermos santos e sem defeito perante ele’, porém, em seu mesmo discurso, diz que ‘todos nós também outrora andávamos nas cobiças da nossa carne, fazendo as vontades da carne e dos pensamentos, e éramos por natureza filhos da ira, verdadeiros objetos da ira divina’ e finalmente Paulo diz que Ele convida a ‘nos despir, no que diz respeito a vida anterior, do homem velho que se corrompe segundo as cobiças do engano para que no cumprimento dos tempos, todas as coisas se reúnam em Cristo, as que estão nos céus e as que estão sobre a terra’.


Evidencia-se uma realidade diferenciada em duas dimensões, ou melhor, dois pontos de vista sobre a vida sendo percebida de modos diferentes (por nós, gradativo, por Deus, simultâneo). Na dimensão divina, Deus apenas cria o tempo para que se ganhe em nós a história de cada um teceu até a cessação da nossa dimensão existencial, (“Por isso, a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus...Não só ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nós mesmos, aguardando a adoção, a redenção do nosso corpo.”) para dar sentido a nossa consciência de tudo aquilo que já foi feito por nós em Jesus na eternidade. Na dimensão existencial, nós, vamos assimilando a perfeição ‘daquele que É’ até chegarmos no dia em que a dimensão divina engolirá o tempo e o espaço para sermos, integralmente, um ser habitante de um novo céu, de uma nova terra.

“O Espírito mesmo dá testemunho
ao nosso espírito de que somos filhos de Deus.”

Em Jesus, todas as coisas se convergem naturalmente antes da própria criação, antes da própria existência. Antes da criação, houve a explosão da vida, onde Deus escolheu os seus por um critério só: Jesus Cristo, o eleito de Deus e os que embarcariam debaixo de suas asas pela eterna e etérea imolação. Eis o paradoxo: Todo aquele que nele crê, não perecerá, pois nós nos tornamos eleitos em Cristo e isso só é revelado a nós como um reflexo daquilo que já aconteceu antes mesmo da criação – na eleição antes que houvesse eu e você. Toda história humana é contada por Deus (Deus existencializa através da criação todas as coisas que o Homem intentou) e para o próprio Homem através da criação, no tempo. Tudo o que aconteceu na eternidade, onde o Pai decidiu pela concepção da vida autônoma, antes da fundação do mundo, fora do tempo, fora da existência, aconteceu através de Jesus a fim de que o Pai recebesse a adoração da vida. O culto perfeito já aconteceu!

Fomos salvos mediante a fé nele e por ele, depois disso, tudo passou a existir através dele. O sacrifício de Jesus antes da criação, se existencializou na cruz. A eleição daqueles que foram adotados em Jesus, se existencializou em cada conversão – a famigerada teológica ‘graça irresistível’ -, logo, esta graça intrincada aos escolhidos, não é fatalista (um terrível/extraordinário destino programado involuntariamente por Deus), ela apenas revela aquilo que aconteceu na presença de Deus, por cada indivíduo: a escolha entre o caminho e o descaminho e que por conseqüência, toda existência, passa acontecer irrevogavelmente no start dado por nós mesmo, no processo de germinação de vida em Deus, onde somos santificados e eleitos por Jesus na eternidade - onde tudo aconteceu sem a necessidade de existencialidade e espera para receber os seus dentro da estrutura passado/presente/futuro. A existência é uma extensão da vida e nunca o contrário. A existência é o esquadrinhamento da vida para cada consciência. A existência acontece para imprimir individualmente tudo aquilo que nós mesmos decidimos e nos tornamos em vida a fim de que captemos e assumamos dia após dia o que sempre fomos em contraste de quem fomos nos tornando.

“Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens”

A existência está para a vida apenas para nos dar a pulsação, os matizes, os sabores, as escolhas, os vislumbres, a internalização cognitiva, a experiência, as conseqüências, as decisões que sempre foram as nossas e que em outrora não nos era conhecido, pois o que se torna conhecido a qualquer ser criado é o processo de existência de absorção, de evolução da percepção e não é só porque todo o processo de existência é provocada por Deus, que ela é artificial, até mesmo porque se algo irrompe na existência por Deus, é porque fomos nós ainda no útero eternal da vida que concebemos tudo o que se refere a nós mesmo.


“...mas agora conhecendo a Deus,
ou antes sendo conhecidos por Deus...”

Quem olha do ponto de vista da soberania de Deus sem a eleição em Cristo para a ‘salvação daquele que nele crê’, comete o mesmo erro daquele que olha para as escrituras tendo como ponto de vista, uma escola, um dogma, uma lente interpretativa teológica. Quem parte do pressuposto da soberania com esta deficiência, erige a acidez divina, a cosmovisão cartesiana e rígida, onde Deus se diverte tragicamente com a sua criação. A redenção gerada por Cristo é muito mais sublime e insigne do que podemos imaginar. Ela nos alcança e nos assegura antes mesmo da nossa escolha, pois quando decidimos escolher, nós mesmos, junto com o filho de Deus, já escolhemos o caminho a seguir - e a escolha em Jesus e aquela gerada por mim através da minha consciência dentro do tempo é o paradoxo da eternidade e do tempo.

“Ele nos manifestou o misterioso desígnio de sua vontade,que em sua benevolência formara desde sempre,para realizá-lo na plenitude dos tempos - desígniode reunir em Cristo todas as coisas,as que estão nos céus e as que estão na terra.”

‘Nele é que fomos escolhidos, predestinados segundo o desígnio (‘de reunir Cristo em todas as coisas’) daquele que tudo realiza por um ato deliberado de sua vontade, para servirmos à celebração de sua glória, nós que desde o começo voltamos nossas esperanças para Cristo’. Discursa Paulo. A verdade é que a questão é simples, o propósito de Deus é que antes da criação, todas as coisas fossem reunidas nele e que a plenitude do tempo, apenas serviria para atestar a glória da criação e redenção, e também para que cada um de nós ganhasse a percepção do saber a respeito de nós mesmo, do sacrifício e de Deus como reconciliador e Pai que cria todas as coisas. A cruz não só cumpre uma ordem dos profetas do antigo testamento, a cruz existencializa aquilo que aconteceu antes da fundação do mundo a fim de que todo o Homem também, em Jesus, existencialize o seu caminho a seguir conforme aquilo que ele também escolheu antes da fundação do mundo esperando a consumação dos séculos.

“Pela fé, compreendemos que o Universofoi criado por intermédio da Palavrade Deus e que aquilo que pode ser vistofoi produzido a partir daquilo que nãose vê.”

Existência em função da vida! O nosso encontro com a cruz se configura em ambiências que vão desde a eternidade até cruz do Jesus de Nazaré e que por sua vez surte efeito existencial até os confins da Terra, em outras gerações, por vias de Melquisedeques, outros povos, raças e tribos, que não detém a informação histórica de Jesus, porém se tornam filhos de Deus conforme a sua escolha do ponto de vista da eternidade. A desconstrução do EU em detrimento da rendição a Jesus revelará a pluralidade de eleitos na manifestação da reconciliação com os céus e a terra. Calvino, jurista arrogante e que por isso, enaltecia a lei – num tempo de casamento entre política e religião -, não teve muita dificuldade em tecer sua teologia no princípio do absolutismo federalista. Desse modo a tradição calvinista passou a enfatizar entre outras coisas, a máxima:

“...Ele tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece.”

(Quem Jesus, o Cristo, decidiu ter misericórdia quando Paulo diz: “Pois Deus encerrou a todos na desobediência, para usar com todos de misericórdia.”?)
(Quem Jesus, o Cristo, decidiu endurecer o coração perverso quando diz: “Ora, o Filho do homem não veio com o objetivo de destruir a vida dos seres humanos, mas sim para salvá-los!” Não seria o caso de que somente será rejeitado aquele que realmente rejeita a Cristo?)

Calvino adorava tanto a idéia de soberania em via de leis geradora de submissão, que incorporou em sua gestão eclesiástica toda a forma absolutista que ele entendia sobre Deus. Obrigava a todos a crer conforme a sua fé, matou e expulsou muitas pessoas de suas cidades em nome de suas leis, se desdobrava para ressuscitar o espírito da lei do antigo testamento (velha aliança), tentou criar uma teocracia onde Deus é a autoridade maior na cidade representada pelos calvinistas ou apenas, até então, pelos os calvinianos.

“Se Deus fala de uma aliança nova é que
ele declara antiquada a primeira.
Ora, o que é antiquado e envelhecido
está certamente fadado a desaparecer.” Hebreus

Não foi em vão que Voltaire o chamou de ‘papa dos protestantes’. Calvino não era dado ao tema ‘liberdade’ e quando a usava tinha de ‘amarrar’ em algo: ‘somos livres para cumprir as leis de Cristo’ (uma expressão que na verdade, estava mais carregada no fator lei do que no Cristo). Zombava com quem argüisse sobre o Deus de amor, bom e que se relaciona com o ser humano.
A idéia de um Deus soberano sem o espírito de Jesus o fazia cometer grandes enganos e atrocidades em nome da lei, em nome de um poder soberano e vertical o qual afirmava ser baseado na soberania de Deus. A dupla predestinação na versão dele apenas revelava a forma política que ele continha nas mãos. Um cristianismo de soberania, controle e manipulação era um reflexo de sua gestão que decidia quem vivia na cidade ou quem não era digno de viver no conluio social, quem ia para o céu e quem ia pro inferno, quem era os eleitos ao céu e quem era os eleitos a danação. Essa era a soberania do Deus de Calvino. Essa era a soberania de Calvino em Deus.

Toda autoridade tirânica respinga algo bom e favorável aos que estão submetidos a ela, e foi assim que o calvinismo se perpetrou na história. “O lado bom” de Calvino nos chegou até hoje mesmo a custa de sangue e despotismo. Ricardo Gouvêa, respeitado escritor, pastor, calvinista, presbiteriano, professor do Mackenzie usou de eufemismo com Calvino ao dizer: “A doutrina da soberania divina foi transformada, pela ortodoxia cartesiana, e é ensinada pelos fundamentalistas, como uma forma de fatalismo. Tudo já está determinado por Deus, portanto não há qualquer liberdade resguardada ou concedida aos homens. Este fatalismo nada tem de cristão ou de bíblico, mas está ancorado na filosofia grega e no paganismo pré-cristão. Isso gerou, na alegada ortodoxia reformada, o predestinacionismo, este cancro do calvinismo, uma ênfase injusta com o próprio pensamento de Calvino, e que permite aos homens irem direto ao inferno para cumprirem a vontade de Deus” . Livro: “A Piedade Pervertida”

A luz calviniana empalidece perante a sua própria sombra. Sua mente, ainda que fosse capaz de gerar grandes arrazoamentos, estava a serviço de seu conceito, de sua prisma, de seu jeito de ver Deus como um ser que dita soberanamente sem ser pelo caminho de eleição em Jesus. Nem Karl Barth conseguiu amenizar os tratados de Calvino, porém foi muito feliz quando tentou reformular e colocar a tradição dos reformadores nos pés de Cristo: “Jesus Cristo é Deus que elege, e Jesus Cristo é o homem eleito.”

Nada se tornaria uma tragédia teológica se partíssemos do pressuposto que o Deus soberano é o Jesus encarnado – aquele que já disseram tempos atrás: “Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.” Não existiria uma mensagem tão predeterminista se os anunciadores da boa nova levassem mais a sério a disposição em transmitir a boa nova da reconciliação de Jesus com o mundo e sem anunciar um evangelho que na verdade, não pulsa no coração do ser humano, apenas envaidece a mente daqueles que tendem a se deliciar nos compêndios teológicos e históricos que apenas enumeram, definem, conjecturam, sistematizam, e geralmente, apenas conforme suas convicções relacionadas com o divino/escola intelectual/política/poder.


Seria bom que todas essas elucubrações sobre o evangelho, tivessem como princípio o que também já foi dito tempos atrás: “...assim Cristo se ofereceu uma só vez para tomar sobre si os pecados da multidão, e aparecerá uma segunda vez, não porém em razão do pecado, mas para brindar a salvação daqueles que o esperam.” Quando a mensagem da graça é depreciada por conta do nosso frisson fatalista, estamos costurando o véu que Cristo rasgou e a graça é a favor encarnado em Jesus e que não pode ser medido, limitado e afrouxado. A dança da graça é irresistível por ser, atraentemente, abrangente e não por ser, inquestionavelmente, seletiva. A graça nos surpreenderá pelo seu poder de beleza e não pelo seu poder estático. A graça irresistível é o amor irresistível.

“Não vos deixeis desviar pela diversidade de doutrinas estranhas.
É muito melhor fortificar a alma pela graça do que por alimentos
que nenhum proveito trazem aos que a eles se entregam.”

Volto a música de Caetano Veloso: “E as coisas que eu sei que ele dirá, fará, não sei dizer, assim, de um modo explícito e aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”. O óbvio é o amor! A surpresa será em ver o óbvio revelado em sua incomensuralidade no tête-à-tête com o Eterno. O óbvio maximizado surpreenderá a todos não por ser exótico, mas por ser o óbvio na sua expressão maior, na nueza do Espírito Eterno.

Nenhum comentário: